8.8.06

Todo mundo vendo tudo vermelho – ou – O estranho caso do psicólogo pensante

Na aula de comunicação e expressão hoje (sim, estou tendo que passar por isso) a polêmica correu solta por causa de um texto da Clarice Lispector que tínhamos de interpretar. O texto, sobre um gordinho e feliz coelhinho branco que um dia cismou de fugir, se arrependeu, voltou para a sua casinhola e viveu feliz e gordinho para sempre gerou um monte de interpretações à la “Marx-não-morreu” sobre lutas pela libertação dos oprimidos, conformação com o que nos é oferecido pelos opressores, e mais um tanto de ideologias que já nos foram repetidas à exaustão. Tentei chamar o povo à razão, afinal, por favor, gente, coelho não é classe trabalhadora, não é roubado na mais-valia produzida, o coelho nem estava revoltado, e pra falar a verdade, nem sequer teve a idéia de fugir! O tal coelho, que estava mais pra explorador do que explorado - já que outros trabalhavam para o manter limpo, branquinho e alimentado – veja bem, o tal do coelho um belo dum dia cheirou uma idéia que nem era dele e resolveu fugir da casinhola... meia volta na calçada, e percebeu que se quisesse continuar a manter a rechonchuda silhueta daqui pra frente ia ter que ganhar a cenoura com o suor dos seus bigodes. E de volta à sua antiga vidinha, viveu feliz, feliz...

Não é que eu não entenda que a metáfora é possível, sim. Mas me preocupa essa “lavagem cerebral” que a gente sofre quando estuda ciências sociais que nos faz ver revolta popular em qualquer situação em que alguém se cansou da rotina e foi dar uma voltinha. E da mesma forma, essa visão de que no fundo, no fundo, todo mundo tem láááá no fundinho um desejo de se libertar de alguma coisa que ninguém nem sabe o que é, mas que é imposta sobre ele por um outro ser humano que está numa posição diferente. Muito me aborrece essa ficção de que a luta contra o seu diferente é boa, é necessária, já está plantada em cada um de nós que nasce. Perigoso esse negócio de sair cheirando qualquer idéia.

Só não quero ser mal compreendida: não, não sou Alckmista, como me “acusaram” (Alckimista no sentido de quem vota no Alckmin, não alquimista no sentido do livro do Paulo Coelho, ainda que o texto fale muito de Paulo, e muito de coelho), e muito menos conformista, muito pelo contrário. Eu também acho que esse mundo ainda está por consertar e que há muito trabalho pela frente. Mas estou cansada desta visão sociológica que só enxerga as diferenças entre os grupos de pessoas; cansada de tanta antropologia procurando divergências sutis entre as culturas (pensem no Líbano e em Israel e digam se eu não tenho alguma razão!). Acho que o século XXI tem que ser o século da psicologia social: vamos finalmente sair à procura daquilo que nos une, daquilo tudo o que temos em comum, das nossas similaridades, daquilo que faz de todos nós, todos os 6 bilhões, seres humanos.

Sim, há uma guerra a ser travada em busca de transformar esse mundo. Mas nessa guerra eu não vou com o exército. Quero ser da cruz vermelha.

E para quem ainda não conhece...

O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE

Pois olhe, Paulo, você não pode imaginar o que aconteceu com aquele coelho.

Se você pensa que ele falava, está enganado. Nunca disse uma só palavra na vida. Se pensa que era diferente dos outros coelhos, está enganado. Para dizer a verdade, não passava de um coelho. O máximo que se pode dizer é que se tratava de um coelho muito branco.

Por isso tudo é que ninguém nunca imaginou que ele pudesse ter algumas idéias. Veja bem: eu nem disse “muitas idéias”, só disse “algumas”. Pois olhe, nem de algumas achavam ele capaz.

A coisa especial que acontecia com aquele coelho era também especial com todos os coelhos do mundo. É que ele pensava essas algumas idéias com o nariz dele. O jeito de pensar as idéias dele era mexendo bem depressa o nariz. Tanto franzia e desfranzia o nariz que o nariz vivia cor-de-rosa. Quem olhasse podia achar que pensava sem parar. Não é verdade. Só o nariz dele é que era rápido, a cabeça não. E para conseguir cheirar uma só idéia, precisava franzir quinze mil vezes o nariz.

Pois bem. Um dia o nariz de Joãozinho – era assim que se chamava esse coelho – um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo. De pura alegria, seu coração bateu tão depressa como se ele tivesse engolido muitas borboletas. Joãozinho disse para ele mesmo:

- Puxa, eu não passo de um coelho branco, mas acabo de cheirar uma idéia tão boa que até parece idéia de menino!

E ficou encantado. A idéia que tinha cheirado era tão boa quanto o cheiro de uma cenoura fresca.

Joãozinho começou então a trabalhar nessa idéia. E para isso precisou mexer tanto o nariz que dessa vez o nariz ficou quase vermelho. Coelho tem muita dificuldade de pensar, porque ninguém acredita que ele pense. E ninguém espera que ele pense. Tanto que a natureza do coelho até já se habituou a não pensar. E hoje em dia eles todos estão conformados e felizes. A natureza deles é muito satisfeita: contanto que sejam amados, eles não se incomodam em ser burrinhos.

Como eu ia contando, Joãozinho começou a trabalhar na idéia. A idéia era a seguinte: fugir da casinhola todas as vezes que não houvesse comida na casinhola.

Mas o problema era o seguinte: como é que ia poder sair de lá de dentro?

A casinhola tinha grades muito estreitas, e Joãozinho, além de branco, era gordo. É claro que não podia passar pelas grades. O único modo de se abrir a casinhola era levantando o tampo. E o tampo, Paulo, era de ferro pesado, só gente é que sabia levantar.

Durante dois dias Joãozinho franziu e desfranziu o nariz milhares de vezes para ver se cheirava a solução. E a idéia finalmente veio. Dessa vez, Paulo, foi uma idéia tão boa que nem mesmo criança, quem tem idéias ótimas, pode adivinhar.

A idéia foi a seguinte: ele descobriu como sair da casinhola. E, se bem pensou, melhor fez. De repente os donos do coelho viram o coelho na calçada, gritaram, correndo atrás dele, chamaram as outras crianças da rua – e todas juntas cercaram Joãozinho e finalmente conseguiram prendê-lo de novo.

Você na certa está esperando que eu agora diga qual foi o jeito que ele arranjou para sair de lá.

Mas aí é que está o mistério: não sei!

E as crianças também não sabiam. Porque, como eu lhe disse, o tampo era de ferro pesado. Pelas grades? Nunca! Lembre-se de que Joãozinho era um gordo e as grades eram apertadas.

Enquanto isso, as crianças, que não têm natureza boba, foram notando que o coelho branco só fugia quando não havia comida na casinhola. De modo que nunca mais se esqueceram de encher o prato dele.

E a vida, para aquele coelho branco, passou a ser muito boa. Comida era o que não lhe faltava.

(Clarisse Lispector)

12 comments:

Anonymous said...

Se os psicólogos formados desse país não conseguem ver e trabalhar de forma a encarar o indivíduo, eu não sei onde este mundo vai parar. Se tudo for uma leitura histórica, sociológica, coletiva de construção da psique, e não um desafio que cada um deve se propor para cheirar suas próprias idéias, eu realmente não sei onde é que o mundo fez a curva errada. Se ao discordar vc é imediatamente taxada de alckimista (o que esse povo considera como direita, que na verdade não é), é só um sinal de que as coisas estão realmente, muito muito erradas. God bless you

Anonymous said...

A psicologia (sou arquiteto, e vai aí a minha definição, errônea ou não) deve estudar os fenômenos psíquicos do indíviduo. Deve avaliar as decisões pessoais que tomamos, e como agimos para encarar medos, problemas, estigmas. Não dá para ler tudo pela chave opressor-oprimido neste mundo, e talvez haja um erro já de início, na escolha do conto para levar este tema. Ou, o tema fugiu completamente do controle da professora, ou ela quis e pensava isso mesmo. O que é mais preocupante.

Anonymous said...

Bom, foi Marx que convocou os "filosofos" a MUDAR o mundo ao invés de entendê-lo - o que deve ter feito Socrates, Platão e Aristóteles sorrir de desprezo no Céu reservado aso pagãos; bom, o que se vê é justamente isso, o importante não é intepretar a história como ela é, mas mudá-la para que fique marxista. Dá pra fazer isso com muita coisa. Até com a psicologia. É como o Old Boy disse, se a ciencia mais voltada para o indivíduo anda assim, huh, waaal.

Anonymous said...

Oi Tati!!
Devo admitir que também estou impregnada pelas idéias que a mídia e o mundo colocam na nossa cabeça. Mas ainda preciso parar e pensar pra saber se concordo ou não com tudo o que vc falou... De qualquer forma, admirei sua "audácia" ontem de mostrar um novo ponto de vista... É realmente bom abrir os olhos às possibilidades... =)
Beijão, maninha!

Anonymous said...

Olá!
Tenho outras duas coisas a acrescentar: primeiro, o que foi pensado primeiro...rs, é que o coelho era behaviorista, sendo assim nao era um coitado, oprimido, uma vez que estava dominando a situaçao, segundo, é que nao era nem um coelho, mas um rato..rs
Brincadeiras a parte, eu, que sou alckimista de carteirinha, tb nao concordo com toda essa historia de vamos acabar com o sistema pq na hora de comer no macdonalds e de comprar perfume importado, ninguem lembra de exploraçao, Estados Unidos imperialista, nem nada.
Isso pra mim é tudo balela de quem gosta de parecer intelectual.
Mas, como eu mesma disse, o que vc ve, está em vc.

Beijokas

Anonymous said...

nem dá para continuar com esse maniqueísmo em cima do coitado do coelho, que pode até passar a ser behaviorista agora... Meu deus, ele é um coelho. O que é interessante é que o arquétipo - se é que dá para usar esta palavra - da situação é muito mais para uma relação pai/filho, onde o coelho como bebê passa a descobrir na fuga um sinal de linguagem, de comunicação como o mundo exterior. Ele ainda não bem compreende bem o sinal (não sabe pra que fugir) mas passa a entender que ele trás comida. E como o nenê que choramingando ganha leite, vai aprendendo a se comportar num mundo de códigos.

Anonymous said...

Talvez o que mais me impressione, ao final, seja isso. Vc foi "audaciosa". Infelizmente, não era para ser. Várias outras vozes deveriam ter surgido, e com outras interpretações diferentes. Se todo mundo já pensa assim igualzinho, parabéns pra Federal, a lavagem cerebral tá indo muito bem. Como bons cães pavlovianos os nossos intrépidos psicólogos já respondem direitinho, grades = opressão, dissonante = alckmin. Uau. Nem os chineses conseguem isso em tão pouco tempo. Não que isso seja privilégio da Federal ou dos psicólogos. como ex-arquiteta vc sabe do que estou falando. Mas sempre pensei, romanticamente, que os psicólogos detivessem chaves de leitura do mundo que fossem outras, e que apostassem na diversidade de pensamento para melhor compreenderem. Toc, toc, follow the white rabbit!!

Tatiana said...

Bom, acho que uma coisa boa desse post foi que ele está levando a discussão para a frente e está proporcionando a chance de se ouvir os outros pontos de vista. Em defesa da Federal, tenho a dizer que a gente é muito incentivado a questionar, mas acho que esse defeito de ver tudo sob uma perspectiva marxista vem da nossa formação já lá desde o ginasial. Acho que a Mônica (a professora, que é da Letras, e não da Psico) privilegiou mesmo um pouco os grupos que estavam fazendo esse tipo de interpretação, investigando melhor as hipóteses deles do que as dos outros, talvez por ser esta a visão mais ressonante com a dela, mas depois do que eu falei na sala, a discussão ficou muito mais animada e vários outros pontos de vista foram surgindo! Achei super válido, e tb menos chato! rsss... Todo curso tem seus defeitos e suas virtudes, mas acho que tb é válido lembrar que o mais importante é botar a mão na massa e buscar construir por nós mesmos a nossa formação.

Agora, o que eu acho mais importante frisar aqui não é tanto o que aconteceu na sala, mas esse fato de que essa forma de interpretar TUDO que nos é ensinada no fundo é uma forma de ver LUTA (de classes, de culturas, de qq coisa) em tudo. Isso é o que eu acho perigoso. Acho que tudo isso podia fazer mais sentido num momento histórico como o da guerra fria, mas gente! A coisa já mudou de figura, e está na hora de valorizar um outro olhar. Acho que as contribuições científicas das ciências sociais foram muito importantes em um outro momento mas (e agora vou ser radical) agora está na hora de ver que, não obstante as diferenças realmente existam, detalhá-las já não interessa! Hora de voltar o nosso olhar e nossos intelectos para a busca do que nos faz iguais!! Acho que a busca da igualdade vai ser um caminho muito mais frutífero para abrandar as diferenças do que cavar cada vez mais fundo esses abismos que nos separam dos nossos irmãos seres humanos (estou começando a soar meio esotérica, hora de parar! rsss)

Anonymous said...

Bem colocado Tati, mas uma coisa que talvez seja surpresa é que a literatura a qual desde o ginásio estamos acostumados a ler não é a única do mundo. O que eu quero dizer é que existem outras correntes de sociologia, história e de estudos de sociedade que não interpreta tudo como sendo fruto da luta de classes, dos oprimidos x opressores. O que ocorre, nesta parte do equador, é que é difícil ter acesso a ela, de tão marxista que é TODA a educação brasileira, onde o ministro da educação vai em lançamento de cartilha do MST. Enfim, vivemos na matrix, mas é uma matrix inversa a qual nos fazem acreditar. Não é a Matrix do "Sistema", capitalista selvagem, etc, que domina, mas seu oposto: O pensamento único das lutas de classe, estatizante e totalitarista.

Anonymous said...

Pode parecer que não tem nada a ver agora, mas veja se encontra aí na federal "O Jardim das Aflições" do Olavo de Carvalho que é livro muito interessante sobre quem já sai taxando qualquer um de "alckimista"... Afora ser um livro belíssimo sobre ética, moral e livre pensamento.

Lucas said...
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Lucas said...

Primeiramente, olá coelhinhos felizes! Hehehehehe, tô brincando!

Bem, primeiro eu digo que devo concordar com a questão da transformação do mundo em um grande ringue de luta-livre; e devo concordar que nos é passada uma visão um tanto quanto unilateral desde que o primeiro professor barbudo de geografia entra na sala com uma camisa do Che.
Mas devo dizer que não me soa muito coerente ir diretamente dessa visão para uma igualdade parecida com a dos obesos e brancos coelhos. Primeiro (e mais idiota) não somos coelhos. E, também não somos todos, pode-se dizer, "pasteurizados" como os coelhos, que cruzam entre os seus iguais e terão como filhotes... Iguais: brancos, e mui provavelmente obesos também. Eu acho que a igualdade enquanto seres humanos é o mito que devemos de certo modo seguir (não perseguir). Não digo utopia porque isso talvez leve a uma visão de que nunca lá chegaremos. Prefiro ser otimista a longo prazo, bem longo...
Mas o que deveríamos agora ter como objetivo é a conscientização de somos sim muito diferentes entre nós e, mesmo sendo seres humanos, católicos, socialistas, paraplégicos, psicólogos, negros, ou seja, pertencendo a qualquer desses grupos ou categorizações que nos igualizam por baixo, ainda resguardemos a concepção de que, mesmo fazendo partes desses grupos, estamos imersos - pelo menos até os joelhos, lembrando daqueles desafortunados coelhinhos que conhecem a realidade até os muros do seu condomínio de casinholas de luxo ou pela revista Caras no salão de beleza - numa sociedade que, além de ser uma casa de iguais, é uma casa de diferentes. E bem diferentes, dizendo em todas as dimensões. Por isso, eu digo que o RESPEITO a todas essas diferenças é mais importante que tentar incutir na cabeça das pessoas que vivemos num mundo desnivelado, cheio de degraus e valetas, e ainda assim somos todos iguais. E digo um respeito consciente, uma coisa de cada um pra cada um, de cada grupo pra cada grupo. Os conflitos devem existir; são eles que geram (ou pelo menos deveriam gerar, se houvesse respeito) os acordos que juntam pólos diferentes da mesma questão na busca da solução do problema. Enquanto continuarmos olhando pra igualdade estaremos passando por cima de tantas diferenças! Diferenças essas que enriquecem de forma impressionante nossas experiências e geram as grandes conquistas da humanidade.
Se o problema é a diferença, não ignoremos isso em nome de uma igualdade a ser socada pelos ouvidos; enquanto o problema não for sanado e compreendido, avançar será infrutífero. Se não resolvermos esse problema de respeito à diversidade humana, não poderemos avançar com sucesso para a percepção de uma igualdade.
Eu gostaria de fazer um comentário: eu não li todos os comentários caprichosamente, mas alguns que li criticam a visão "homogeneizada" de várias pessoas que estavam naquela aula de Comunicação e Expressão enquanto psicólogos que deveriam ter uma visão mais aberta que comporte o seu objeto de estudo e intervenção: o tal do ser humano. Sinto-me no dever, enquanto um dos alunos presentes no acontecimento, de advertir que, mesmo pretensamente argumentando como adultos, somos na maioria (senão todos) jovens estudantes um tanto ainda imaturos e em formação, tanto pessoal quanto profissional. Dizer que "psicólogos isso ou aquilo" foi um pequeno deslize, levando em conta a discussão em questão. Desculpe-me se pareceu uma agulhada, mas é apenas um alerta. Não sei se há algo realmente muito muito errado, como o Kiko disse; creio que é preciso considerar a sede por transformação que os universitários "porraloucas" tem no começo de suas trajetórias ideológicas e profissionais, e não imediatamente contradizê-los ou taxá-los. A maturidade dessas coisas vem com a vivência e com o tempo.
Essa minha fala deve ter saído meio errática ou descoordenada e, com certeza, desprovida de autoridade ou maturidade, mas ainda é minha contribuição ao debate. Espero ser lido e que esse debate continue.
Agora uma agulhada: deixem os cães de Pavlov em paz, o behaviorismo é mais que isso. É a mesma coisa que se eu criticasse todas as correntes psicológicas ou psicoterápicas de origem freudiana com base na Psicanálise tradicional. Uma questão temporal.