9.7.05

“Um monstro de delicadeza”

(Esta é a poesia do Vinícius de que falei no post anterior. Ela não tem nome. Na verdade, é a parte do meio de uma seqüência de três poemas. Para mim, ela fala de uma coisa que todos temos em comum, mas poucos ousam admitir. Fala de tudo aquilo que a gente traz dentro e que é horrendo. O que o Jung chama de a nossa “Sombra”. Lá vai:)

Falarei baixo
Para não perturbar a tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluído que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado do que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.