25.8.06
Desaforismos
Segundo que eu não sou astróloga pra ficar lendo nas "estrelinhas".
Terceiro que Sartre é quem tinha razão - "o inferno são os outros".
11.8.06
8.8.06
Todo mundo vendo tudo vermelho – ou – O estranho caso do psicólogo pensante
Na aula de comunicação e expressão hoje (sim, estou tendo que passar por isso) a polêmica correu solta por causa de um texto da Clarice Lispector que tínhamos de interpretar. O texto, sobre um gordinho e feliz coelhinho branco que um dia cismou de fugir, se arrependeu, voltou para a sua casinhola e viveu feliz e gordinho para sempre gerou um monte de interpretações à la “Marx-não-morreu” sobre lutas pela libertação dos oprimidos, conformação com o que nos é oferecido pelos opressores, e mais um tanto de ideologias que já nos foram repetidas à exaustão. Tentei chamar o povo à razão, afinal, por favor, gente, coelho não é classe trabalhadora, não é roubado na mais-valia produzida, o coelho nem estava revoltado, e pra falar a verdade, nem sequer teve a idéia de fugir! O tal coelho, que estava mais pra explorador do que explorado - já que outros trabalhavam para o manter limpo, branquinho e alimentado – veja bem, o tal do coelho um belo dum dia cheirou uma idéia que nem era dele e resolveu fugir da casinhola... meia volta na calçada, e percebeu que se quisesse continuar a manter a rechonchuda silhueta daqui pra frente ia ter que ganhar a cenoura com o suor dos seus bigodes. E de volta à sua antiga vidinha, viveu feliz, feliz...
Não é que eu não entenda que a metáfora é possível, sim. Mas me preocupa essa “lavagem cerebral” que a gente sofre quando estuda ciências sociais que nos faz ver revolta popular em qualquer situação em que alguém se cansou da rotina e foi dar uma voltinha. E da mesma forma, essa visão de que no fundo, no fundo, todo mundo tem láááá no fundinho um desejo de se libertar de alguma coisa que ninguém nem sabe o que é, mas que é imposta sobre ele por um outro ser humano que está numa posição diferente. Muito me aborrece essa ficção de que a luta contra o seu diferente é boa, é necessária, já está plantada em cada um de nós que nasce. Perigoso esse negócio de sair cheirando qualquer idéia.
Só não quero ser mal compreendida: não, não sou Alckmista, como me “acusaram” (Alckimista no sentido de quem vota no Alckmin, não alquimista no sentido do livro do Paulo Coelho, ainda que o texto fale muito de Paulo, e muito de coelho), e muito menos conformista, muito pelo contrário. Eu também acho que esse mundo ainda está por consertar e que há muito trabalho pela frente. Mas estou cansada desta visão sociológica que só enxerga as diferenças entre os grupos de pessoas; cansada de tanta antropologia procurando divergências sutis entre as culturas (pensem no Líbano e em Israel e digam se eu não tenho alguma razão!). Acho que o século XXI tem que ser o século da psicologia social: vamos finalmente sair à procura daquilo que nos une, daquilo tudo o que temos em comum, das nossas similaridades, daquilo que faz de todos nós, todos os 6 bilhões, seres humanos.
Sim, há uma guerra a ser travada em busca de transformar esse mundo. Mas nessa guerra eu não vou com o exército. Quero ser da cruz vermelha.
E para quem ainda não conhece...
O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE
Pois olhe, Paulo, você não pode imaginar o que aconteceu com aquele coelho.
Se você pensa que ele falava, está enganado. Nunca disse uma só palavra na vida. Se pensa que era diferente dos outros coelhos, está enganado. Para dizer a verdade, não passava de um coelho. O máximo que se pode dizer é que se tratava de um coelho muito branco.
Por isso tudo é que ninguém nunca imaginou que ele pudesse ter algumas idéias. Veja bem: eu nem disse “muitas idéias”, só disse “algumas”. Pois olhe, nem de algumas achavam ele capaz.
A coisa especial que acontecia com aquele coelho era também especial com todos os coelhos do mundo. É que ele pensava essas algumas idéias com o nariz dele. O jeito de pensar as idéias dele era mexendo bem depressa o nariz. Tanto franzia e desfranzia o nariz que o nariz vivia cor-de-rosa. Quem olhasse podia achar que pensava sem parar. Não é verdade. Só o nariz dele é que era rápido, a cabeça não. E para conseguir cheirar uma só idéia, precisava franzir quinze mil vezes o nariz.
Pois bem. Um dia o nariz de Joãozinho – era assim que se chamava esse coelho – um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo. De pura alegria, seu coração bateu tão depressa como se ele tivesse engolido muitas borboletas. Joãozinho disse para ele mesmo:
- Puxa, eu não passo de um coelho branco, mas acabo de cheirar uma idéia tão boa que até parece idéia de menino!
E ficou encantado. A idéia que tinha cheirado era tão boa quanto o cheiro de uma cenoura fresca.
Joãozinho começou então a trabalhar nessa idéia. E para isso precisou mexer tanto o nariz que dessa vez o nariz ficou quase vermelho. Coelho tem muita dificuldade de pensar, porque ninguém acredita que ele pense. E ninguém espera que ele pense. Tanto que a natureza do coelho até já se habituou a não pensar. E hoje em dia eles todos estão conformados e felizes. A natureza deles é muito satisfeita: contanto que sejam amados, eles não se incomodam em ser burrinhos.
Como eu ia contando, Joãozinho começou a trabalhar na idéia. A idéia era a seguinte: fugir da casinhola todas as vezes que não houvesse comida na casinhola.
Mas o problema era o seguinte: como é que ia poder sair de lá de dentro?
A casinhola tinha grades muito estreitas, e Joãozinho, além de branco, era gordo. É claro que não podia passar pelas grades. O único modo de se abrir a casinhola era levantando o tampo. E o tampo, Paulo, era de ferro pesado, só gente é que sabia levantar.
Durante dois dias Joãozinho franziu e desfranziu o nariz milhares de vezes para ver se cheirava a solução. E a idéia finalmente veio. Dessa vez, Paulo, foi uma idéia tão boa que nem mesmo criança, quem tem idéias ótimas, pode adivinhar.
A idéia foi a seguinte: ele descobriu como sair da casinhola. E, se bem pensou, melhor fez. De repente os donos do coelho viram o coelho na calçada, gritaram, correndo atrás dele, chamaram as outras crianças da rua – e todas juntas cercaram Joãozinho e finalmente conseguiram prendê-lo de novo.
Você na certa está esperando que eu agora diga qual foi o jeito que ele arranjou para sair de lá.
Mas aí é que está o mistério: não sei!
E as crianças também não sabiam. Porque, como eu lhe disse, o tampo era de ferro pesado. Pelas grades? Nunca! Lembre-se de que Joãozinho era um gordo e as grades eram apertadas.
Enquanto isso, as crianças, que não têm natureza boba, foram notando que o coelho branco só fugia quando não havia comida na casinhola. De modo que nunca mais se esqueceram de encher o prato dele.
E a vida, para aquele coelho branco, passou a ser muito boa. Comida era o que não lhe faltava.
(Clarisse Lispector)